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Ninguém era deixado em casa sem convite para a festa, fosse ele um protagonista nato. Fosse ele o roubar de todas as atenções. Pelo contrário, precisávamos do protagonista na festa, porque a festa com ele era mais cheia.

 

Quero muito ser pequena e quero muito que muitos dos que conheço sejam pequenos também. Já vos conto!

Gostava daquela idade mais pequena, mas ter igual tamanho. Altura! A altura que é preciso para poder fazer todas as coisas. Chegar com o pé ao acelerador e a mão ao armário mais alto da cozinha (centímetros-super-poderosos, quando os temos pela primeira vez). Ter cabelos fortes na cabeça e rebeldes de fortes também. Não ter borbulhas na cara mas ainda usar Clearasil com o medo da praga. Ir à festa da terra e andar no Carrossel ou na Aranha para ser festa. Equacionar durante toda a semana o que vestir no aniversário da Joana, onde vamos jogar às escondidas apesar de grandes que somos.
Não sei quando deixamos de ser leves e inconsequentes para sermos crescidos. Não sei quando se dá essa coisa que nos priva e nos pesa. Mas dá-se. Não avisa. Não diz nada. Não sussurra. Não palpita. Não se mostra. Mas dá-se.
Por não te mostrares logo à partida devia chamar-te cobarde. Não te enuncias por teres vergonha de ti mesma. Acho que é isso. Só pode ser isso. O primeiro dente enuncia-se. A primeira menstruação enuncia-se como se nos tornássemos pequenas senhoras fantásticas e admiráveis. A entrada na universidade é um orgulho desmedido, um orgulho gabarolo-sonhador para qualquer pai e mãe que se preze. Há até espaço para os dentes do siso. Até eles são motivos de orgulho! Até que de repente acordamos crescidos.
Quando a tragédia acontece, não façam o reparo, sou assim, sou dramática. Quando acontece, agora sim, podem vir os reparos. Somos reparados. Repara-se em tudo. No que se veste, no que se fala, no que se exerce, no que se ganha, no que se gasta, nos sítios que se frequenta. Repara-se até com quem nos damos. Como dizemos e como pronunciamos, como temperamos o prato e como o apresentamos. Notamos que viramos crescidos, quando viramos objetos de reparo. Ficamos iguais aos demais. Já não há desculpas. Esgotamos o nosso plafond de desculpas para tudo, sem saber como nem porquê, não há perdão para o mau tempero. Não há perdão para as nossas escolhas que em tempos eram motivo de forte incentivo.
Mas não é isto que me aflige. E empregar aqui a aflição não tem nada de dramático. Aflige-me mesmo!
O que me faz querer muito ser pequena são as saudades que tenho da inocência. Da minha e da inocência dos pequenos que cresciam comigo. Éramos tão melhores seres humanos! Fere-me a diferença! Éramos tão mais puros, tão mais amigos, tão mais verdade. Éramos tantos e crescentes porque a nossa verdade e a nossa ausência de medos de tudo e mais alguma coisa era contagiante e desinteressada. Chamávamos este, aquele e o outro para ir à festa da Joana. O muito bonito e o feio. O campeão e o vencido. Ninguém era deixado em casa sem convite para a festa, fosse ele um protagonista nato. Fosse ele o roubar de todas as atenções. Pelo contrário, precisávamos do protagonista na festa, porque a festa com ele era mais cheia. Tinha muito mais piada! Era muito mais gira! Sem ele, ou sem ela, reparem, nem sentido tinha marcar a festa!
Notamos que viramos crescidos, quando viramos objetos de reparo. Por isto, tornamo-nos mais frágeis tal como os nossos cabelos. Por isto, somos muitas vezes mergulhados em tanques de medos. Por isto, com o objetivo de vir à tona afogamos outros com a desculpa da sobrevivência.
Se fossemos mais pequenos, o tanque de medos virava uma piscina, aprendíamos ginástica sincronizada e fazíamos um brilharete!
Hoje a minha avó faz 86 anos. Isto passa a voar. Recuso-me a ter estampado na testa: Categoria Crescidos. Atirem-me com o “inocente”, eu vou guardar como elogio.

Gabriela Relvas

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