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O telemóvel da Helena mal tocava. E, quando tocava, o toque parecia-lhe até menos audível. “Antes um vigoroso jovem cheio de testosterona, agora uma mulher no pico da menopausa”, dizia ela. A solidão da Helena persuadia-a a dar vida, ou pouca vida, às coisas que não tinham vida nenhuma. 

Acabava de fazer 36 anos e o último mês fora uma escada depressiva. Os diálogos com a consciência aconteciam cada vez mais.

– Podemos fazer rewind às nossas vidas madrastas? E depois… depois não cometer o erro de ver o mesmo filme outra vez? Fazer outro?

– Helena, achas-te mesmo dona das tuas escolhas?

Tinha lido algures qualquer coisa sobre o determinismo científico, uma explicação mecanicista da realidade incompatível com o que entendemos por livre-arbítrio. Aquilo ficou-lhe na cabeça e ia aparecendo como semáforos intermitentes em estradas entregues a condutores noturnos cansados. “O cérebro produz a mente, e cada estado cerebral é determinado por um estado cerebral anterior. Embora julguemos que estamos a fazer escolhas, as nossas escolhas são, na realidade, inevitáveis”. Andava a ler Frank Tallis e estava assoberbada pela complexidade da mente.

– Sabias que a ideia de culpa não faz sentido?

– Helena, de repente tens chavões e fórmulas de vida? Onde pára a tua liberdade? Tudo o que querias ser! Lembras-te?

– Ah ah! Acabaste de dizer que não sou dona das minhas escolhas e agora tens saudades da minha liberdade?

– E tu acabas por não querer assinar por baixo as tuas decisões e atiras a culpa ao determinismo científico! Que feio Helena! As decisões complexas não podem partir de teorias tão simplistas! É esse conceito estúpido que vai dizer com quem vais casar?

A apatia da Helena dava lugar a uma pasta pegajosa: merda. Saía-lhe merda da mente de forma assustadora. Eu, narrador, andava com medo. Medo dos cocktails de ideias, que, não tendo pontos de partida errados eram misturados de forma perigosa e largados ao Deus dará como bombas relógio. Por algum motivo deu-me para chamar Deus à crónica.

– Ninguém nos salva.

Voltemos ao telemóvel no pico da menopausa e acrescentemos o grupo no messenger das amigas de sempre. A Helena não tinha fotos do pequeno rebento para mostrar porque não havia rebento e isso tornava-a pouco participativa. “Algures numa terra de nenhures”, dizia ela. Não que tivesse vontade de ter filhos, que não tinha.

– Ninguém nos salva de quê Helena?

– Somos nós que erguemos o peito de ar. 

A Helena impressionava-me com a quantidade de merda que dizia, mas impressionava-me também pela lucidez. “Ninguém nos salva” e eu tenho que concordar com ela.

– Ainda gosto de ti.

– Pedi-te para não me largares. Salvas-me! Só que tu és eu e por isso não conta.

– Tonta.

Do telemóvel às mensagens de grupo e das mensagens de grupo às privadas, a quantidade de homens de meia idade com filhos eram os pretendentes insistentes de quem a Helena fugia. Desses e dos jovens na casa dos vinte e poucos (muito poucos). A vida da Helena nunca fora de meios termos, nem ela nunca os quisera. Só que agora queria. Mas o mundo parecia ter sequestrado essa classe do meio para divórcios em 2023. “Nessa altura já estarão na meia idade e com filhos, o que faz da classe inexistente”, dizia. Os poucos que encontrava aqui e ali gostavam do mesmo que ela! 

– Helena, voltamos ao mesmo! Queres escolher agora? Não és tu que dizes que não escolhemos rigorosamente nada?

– Queria estar doente de amor. Com um transtorno de amor qualquer e não estou pois não?

– Não.

– Vês, não escolhemos rigorosamente nada!

– Escolheste estar sozinha. Isso é uma escolha. Lembras-te?

Gabriela Relvas

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