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Cheirava a terra molhada e a mesa vestia-se de linho. A casa, velha, pronunciava-se por ali, naquele lugar de pescadores, misturada com as outras, mas diferente. Às 20h daquele dia, que queria escurecer, os termómetros registavam 29 graus e a Amélia apanhava as gotas que caíam do ar denso e quente de nariz apontado para o céu. Livres e leves, caíam “livres e leves” dizia ela.

Naquele momento, a densidade do ar foi furada com o grito de uma mulher roliça de saias compridas. Do alto das rochas que formavam um paredão, chamava pela criança que saltitava nas sobras do mar. Num ímpeto de fúria a mulher desceu a rampa que dava acesso à praia e arrastou o pequeno Tito de calções ensopados pela orelha até à estrada de terra batida. “Já viste as horas Tito? Ai vais apanhar”. 

O grito da mulher, o choro da criança e a serenidade das ondas formaram a banda sonora daquela praia vazia. À Amélia, pendurada no portão da sua nova casa, parecera-lhe a música perfeita. 

Repentinamente desistiu da paisagem, saltou do portão e foi para dentro. Trancou a porta e como quem descobre um lugar que não conhece e anseia a descoberta dirigiu-se à mesa. Pousou primeiro as mãos e deixou depois os dedos deslizarem pelo linho. Numa espécie de metamorfose com tudo o que a envolvia, deitou-se na toalha sobre a mesa até deixar o corpo respirar a madeira. Ouviram-se os chinelos cair. 

– De que choro eu se estou feliz?

As lágrimas escorriam-lhe pelo rosto já molhado pela chuva quando começou a rir. Ria e chorava convulsivamente em cima da mesa. As imagens das últimas memórias eram inevitáveis e entravam-lhe na mente como tiros de guerra. Encerrava uma história de amor, um amor doente e irreparável.

– Sou livre. Livre e leve.

Lembrou-se das vezes que foi arrastada contra a parede e naquele momento teve simpatia pelo pequeno Tito.

A Amélia “livre e leve” trancou a casa ainda por muito tempo, não fosse o amor irreparável bater-lhe à porta.

Gabriela Relvas

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