Depois de uma noite bem dormida, provocada pelo bendito excesso de álcool, a Helena acordou com vontade de voltar ao sono. Dormir profundamente já não fazia parte dela há largos anos e, por isso, era de aproveitar a maré enquanto ia boa. Foi aí, nesses curtos minutos de regresso ao mundo como ele é, que, vários pensamentos atravessaram sem ordem a cabeça finalmente descansada da Helena. Pareciam flechas atiradas pelo último homem de pé no campo de batalha. A noite fora realmente bem regada.
– Que é feito de mim? Onde parei a insanidade boa? Onde me acrescentei a vergonha? Os bloqueios e os traumas? Onde me acrescentei a tristeza?
A Helena andava às turras com sentimentos de culpa. Culpava-se por beber. Culpava-se por não beber. Culpava-se por querer ser inconsequente e por não conseguir ser inconsequente. Culpava-se a toda a hora num exercício que a acompanhava de há uma mão cheia de anos para cá, mais suado neste último. Eu, narrador, estava demasiado envolvido para dar qualquer conselho que fosse. Mas, entre a hesitação de falar e não falar, falei, aproveitando a serenidade do silêncio do campo de batalha.
– Helena. Estou exausto. Não sei o que fazer contigo e como dividir espaço contigo dentro da tua cabeça. Perdi a razão. Uma voz da consciência sem razão é um monte de merda gigantesco. Ocupo apenas espaço, não sou bonito de ver. Que estou eu aqui a fazer? Perdi todas as bases porque me regia. Roubaste-mas, enrolaste-as como se enrolam fios em novelos e atiraste-mos à boca, com a esperança de me entalares para sempre. Fizeste-o com força e, até, por vezes, com alguma razão. Confundiste-me com todos os teus porquês e verdades inquestionáveis. Estou perdido Helena. E agora que é de ti sem mim Helena? Que é de ti, porque eu a mim já não me tenho.
– Não sei. Não sei. Tenho em mim todas as incertezas. Perdi a intuição. Sem ela não tenho ponto de partida. Sem ela não te posso agarrar, não ando, não saio do mesmo lugar. Porque raio que o pouco que sabemos da vida… chega a todos sempre, sempre, tarde demais.
A Helena voltou ao sono, desta vez menos profundo e embriagado. Ficaram-lhe a pairar as flechas.
A noite, que teve tudo para ser uma noite boa, ficou ali, com um apontamento amargo na almofada.
Gabriela Relvas