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Sento-me na sala, como de costume, nos lugares vazios da quinta fila a contar da frente. Um, dois, três, quatro, cinco. É aqui. Os lugares que ninguém quer são a minha escolha óbvia. As cabeças distraem-me e fazem-me perder o filme. Vou sentar-me naquelas. É o que me acontece com as roupas. Chegam, são colocadas à rejeição e seguem para os saldos porque ninguém as quer. Compro-as a metade do preço. Não que as espere, revelo-me pouco dotada do talento saber esperar, mas acontece-me sempre num acaso. Encontro-as ali, à minha mercê, sem ninguém as querer antes. Levo aquela.

As cadeiras que ninguém quer são as roupas que não fazem vitrine, a não ser para dizer em grandes letreiros acusatórios, “a 50%”. E, deu-me uma curiosidade aguçada de, enquanto subo demoradamente os poucos degraus que me levam até ao meu lugar exclusivo, ver quem se ali sentou, na parte que não é minha. Mas apagam as luzes das paredes e fica só a tela. Sinto algumas cabeças emparelhadas a ver se me descobrem o par, com a mesma curiosidade aguçada que eu. Mas o escuro apagou o par que não havia.

Assim que me sento apercebo-me de uma dor no peito. A dor é intermitente. Certifico-me que é do lado esquerdo. Volta outra vez. Pego no telemóvel e escrevo-lhe: dor no peito intervalada. Seleciono os “4 sintomas que você vai sentir  antes de um ataque cardíaco”. A dor cresceu. Não foi inteligente da minha parte. Começo a implodir o que leio na tentativa de esconder de mim o que leio. E, num ápice, os lugares exclusivos da sala de cinema passaram a ser uma morte que morre devagar, sem hipótese de ser anunciada por um ai que me dói. Ninguém  vai ouvir. A parte que não é minha fica demasiado longe. A possibilidade de um grito abafado pela distância pareceu-me uma certeza nítida, fê-la real o meu percepcionismo. Pé ante pé fui às urgências agarrada ao coração. Olho o “Vice” rasgado na minha mão. Ofereço as pipocas ao médico que não as quis, mas que me devolve um sorriso castiço. A voz dele soa a família e trata-me por “oh Gabriela” com uma proximidade que me agrada. E eu rio agarrada ao coração.

Hoje aconteceu-me uma coisa boa. Sentei-me na sala de cinema neste estado de relaxamento onde todos os afazeres desaparecem e os emparedados baixam e veio-me o medo. Com ele, também, a vontade de ter pessoas por perto.

–  Oh Gabriela, não lhe podem dar boas notícias.

Quis eu as pipocas quando cheguei a casa. Estavam de morrer.

Gabriela Relvas

One Comment

  • Rui diz:

    Na ficção pode acontecer tudo à personagem principal. Mas dói imaginar a menina que nunca larga a caneta, com uma dor no peito! Dói sempre quando dói em tudo o que o que são os nossos afetos! Para que sirva de profilaxia… jurei a mim mesmo que nunca mais levava pipocas para um filme! Não foram poucas as vezes que água alguma me aliviou de tão engasgado com as malditas casquinhas de milho! Malditas mesmo!
    Nem que sejam gourmet! 😠
    Mão sobre o coração para que nada o possa ferir. E recomendo que se inventem pipocas que não engasguem, porque há filmes que valem mesmo a pena!
    Bjs. #oquepermanece

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