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Gosto de chegar a horas, talvez venha daí o problema que me formiga. A partir do momento em que comecei a perceber a importância de chegar a horas, tornei-me refém. Sinto-lhe as velocidades com uma sensibilidade capaz de intuir. Sinto-o lento. Sinto-o demorado e impaciente. Sinto-o corrosivo, enlouquecido, precipitado, vertiginoso. Em todas as suas fórmulas, eu sou sempre refém. Começo até a praticar um ligeiro ódio sobre o chegar a horas, mas continuo a gostar de chegar a horas, o que torna a minha “prática” impraticável. Tenho-a trabalhado apenas no meu interior. O meu interior diz-me, “foda-se para as horas”, mas ficamos por aí. Sem mais avanços. Ninguém dentro de mim diz mais nada.

O Tempo.

O Tempo obriga as pessoas que gostam de mim a quererem casar-me. Mas o Tempo não tem capacidade de me fazer querer casar. Logo aqui, temos uma incompatibilidade que se faz ver, tendo em conta que o Tempo obriga as pessoas que gostam de mim a dizerem-me, “vais ficar para tia”, ainda que não verbalizem. E a bobine desenrola por aí noutras coisas mais, coisas maiores. Deve ser por isso que o Tempo decidiu fazer-me sofrer. Tem esta espécie de complô contra mim montado, no entanto, eu continuo a chegar a horas. A ter-lhe respeito. Mas toquei-lhe no protocolo.

Na mesa redonda do nosso jantar, estava lá um rapaz, com a mesma doença que eu. Éramos os únicos deixados na beira do prato. É assim que o tempo quer que sejamos vistos e eu faço-lhe a vontade. Para o tempo, somos doentinhos. Os amigos predestinaram-no para mim. Como me predestinaram para ele. Ele queria casar. Então a primeira coisa que me disse foi “és tão bonita que os teus pais deviam ser postos em tribunal”. Piscou-me o olho. Seguiu-se um quase rosnar, coisa de macho vigoroso, acompanhado de um “tu não te podes mover assim”. E assim se desenrolou o jantar, com o “tu não te podes mover assim”, acrescentado mais tarde de um “se não eu…”. 

Com a minha sensibilidade ao Tempo, a sensação de tortura agigantava-se. Já não sabia como havia de pegar no copo de vinho ou cortar a carne, se não ele! Decidi  então tomar eu conta do Tempo e ver onde o macho vigoroso ia dar. Já que ia perder parte de ti, Tempo, que fosse melhor aproveitado. Então pisquei-lhe o olho eu. Ele disse que eu não podia piscar o olho, se não ele! Então pisquei-lhe desta vez o esquerdo. E ele… ele nada. Pisquei-lhe então os dois. Ao mesmo tempo, Tempo! E ele, um nada doloroso. Vi-lhe a aflição nos músculos que arreganhavam os espaços entre os botões da camisa. O vigor ficou mudo. O naco de carne, que era eu, piscava olhos.

Não sou de troçar, mas andas a troçar de mim há demasiado, Tempo. Deixa as tuas sirenes tocarem noutros sítios. Deixa-me achar-me bem sozinha, porque a verdade é que preencho-te bem. Não tenho cerco no campo nem rede no céu. Como os passarinhos. Não te chega ver-me a chegar a horas? Eu já percebi a tua importância! Preferia estar inconsciente. Não domines vozes de quem eu gosto para me corroeres ou precipitares. Deixa-me estar. Eu danço bem esta coisa e até então danço-a melhor sozinha. Não me faças sofrer por isso. Formigas-me e sou tua refém. Devia bastar-te eu ter-te sempre presente! Sei que me queixo, sei que te consumo a escrever sobre o amor. Mas o amor não é o único homem que está livre na mesa. E eu sinto-me como te disse, sem cerco no campo ou rede no céu. Como os passarinhos. E é bom. 

Gabriela Relvas

2 Comments

  • Paulo Ribas diz:

    Tb já fui assim tb já pensei assim tb já pisquei olhos 👀 e tb já me piscaram o direito e o esquerdo mas a verdade é que até os pássaros 🦅 voam melhor acompanhados.

    • Gabriela_Relvas diz:

      Olá Paulo! Sabe-me sempre bem vir até cá e encontrar uma mensagem. Como não é o lugar comum Facebook ou Instagram, sabe melhor! 🙂 Obrigada por isso. Quanto ao voar juntos, sim… mas melhor que gostem da mesma canção.

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