IC Oriente-Espinho: Escrevo-vos do comboio
Sabe-me sempre muito bem ir e digo o ir até lá, ao meu lugar. Ir e ficar um pouco, o suficiente para acalmar a cabeça, o coração, as costas, doem-me mais as costas noutros lugares. Acalmar até as mãos que vão agarrar o certo, o seguro, o amado que se ama mais que os outros todos que se amam. Acalmar os olhos, têm-me doído. Sinto que me gasto e me renovo. E é lá que me renovo para poder gastar-me.
Tenho esta voz que me sussurra, “és de lá, serás sempre de lá.” É tão bom ter um lugar, uma conchinha, uma casca de noz onde os poucos que cabem lá dentro são tudo menos efémeros. Tanto. Tenho tanto.
Estou no comboio, a ir até ti conchinha. Mas não era nada disto que vim aqui contar. Perdoem-me, saiu-me da boca dos dedos. Acho que o que nos palpita não deve ficar entalado, nem nas mãos.
Já te agarro, Esmoriz.
O que queria era mesmo falar-vos do comboio e das viagens que trago com ele. Têm-me acontecido coisas, daquelas que se põem nos livros.
IC Espinho-Oriente: Histórias que se escrevem I
O N. estava sentado à janela, já nem sei como começamos a conversar. Ofereceu-me ajuda com a mala, em inglês. Falam-me sempre em inglês quando entro no comboio, assumi-o assim um simpático português, como de costume. Atrevo-me a dizer que quando entro no comboio com destino a Lisboa mudo de nacionalidade, o meu país de origem passa a ser a Noruega, a Finlândia ou a Suécia, um deles. Mesmo quando falo com o pica na minha língua. Acreditam sempre que me esforço bastante para mostrar o meu bom português (que entretanto devo ter aprendido nas férias que vou passando em Portugal faz uns bons anos)! Este rótulo cansa-me, mas já não vou a tempo de nascer com outros olhos e outra tez. Culpa de ninguém.
Ia no N, que entretanto me conta da sua bicicleta. Vinha de Itália a pedalar. Eu bem vi no hall de entrada da carruagem o instrumento de duas rodas (pendurada de nariz para cima parecia-me um instrumento). Mas contou-me mais. Vinha de mais longe, Nova Zelândia (Auckland), pedalava desde Itália com viagens de comboio à mistura. Trazia duas pequenas malas (pequeníssimas, lembravam-me as malas que se usavam na escola, no tempo que o meu pai andava na escola, o que haveria de caber lá dentro?), vinha com um roteiro pouco alinhado, aberto ao improviso e especialmente à natureza. Fugia dos olhos da multidão e do igual a todas as outras coisas. Ia até à Nazaré, o lugar da maior onda do mundo. A história dele seduziu-me logo nas primeiras palavras que me dirigiu.
O N. tencionava ir a Lisboa, predestinava duas semanas por lá.
Mas estava curiosa sobre o que N. fazia. Qual seria a sua profissão que podia largar por tanto tempo e voltar. O N. tinha de facto uma profissão que largou. Disse que quando regressasse havia de ter outro lugar reservado para ele. O N. tinha a minha idade e este era um assunto que não o preocupava minimamente. Percebi que nascemos os dois em diferentes circunstâncias.
Sugeri-lhe, aquando da sua descida até Lisboa, que fosse até à Praia da Ursa, uma das mais belas praias selvagens do mundo, ali, mesmo ao lado do Cabo da Roca (o ponto mais ocidental da Europa). O acesso é difícil, mas pareceu-me que para o N. não se colocavam obstáculos nessa matéria. E na matéria da loucura boa também.
Entreguei-lhe a bicicleta na porta. Ficamos assim, num adeus para sempre. Percebi que o adeus para sempre não tem que ser necessariamente mau.
Mais tarde, quando já nem me recordava que tínhamos trocado “contactos”, o facebook é de facto bom nestas coisas, o rapaz da bicicleta mandou-me mensagem.
“Fui até lá. Ao lugar selvagem que me contaste. Ergui uma tenda e passei lá a noite, sozinho. A melhor noite da minha vida. Eu, o céu, o mar. Obrigada.”
Não falamos mais. Não era preciso acrescentar mais nada. Minto, acrescentei eu, um sorriso. O N. será sempre um sorriso.
*CONTINUA*
Fiquem com um “cheirinho”:
O V. é de Detroit. O V. apresentou-se mal me sentei, disse sentir que se devia apresentar tendo em conta que seríamos vizinhos umas boas horas. Eu ri, lembrei-me da outra viagem.
Gabriela Relvas