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Tic tac. Ouve-se outra vez o som da mensagem. Quem é?
Ela não se pergunta sobre quem é, ela sabe. É ele. Sempre ele. Tic tac. É ele outra vez, sem nada a acrescentar no texto, mas a aparecer, ali onde ela está sem ele (só com ele). Na verdade ela não está ali onde deveria de estar. Deixou o corpo pendurado por aquilo que ela costumava ser. Vive com o pensamento nele, com o que o magoa e com o que o agita, vive com as inseguranças dele.
Tic tac.
“Como está a correr?”. A resposta dela, “bem, muito bem”.
Tic tac.
“Está a saber-te bem estar com as tuas amigas?”. Ela, “muito (não sei ao certo)”.
“Eu disse que te fazia bem”.
Tic tac.
“Está tudo bem? Não respondeste…”
Tic tac.
“FODA-SE, estou preocupado contigo!” Ela, “desculpa, fui à casa de banho”.
Tic tac.
Ela chegou a casa e correu para os braços dele que a agarraram com tudo. Ela ficou ali dentro, daquele abraço, em paz. Só aquele abraço lhe dava paz, fora dele a vida dela era música desconcertante. Finalmente a viver a vida dela (a dele), com ele. Só com ele.
O abraço acabou e vieram as perguntas, seguidas de vários “amo-te”. Quem lá estava? Amo-te. Deixa-me ver-te? Amo-te. Estás linda! Amo-te. Dançaste? Amo-te. Porque prendeste o cabelo? Nunca prendes o cabelo para mim assim”. Ela, “prendo bem melhor para ti”.
Ela conhecia os ciúmes dele, um não assunto entre os dois, deixava-o muito alterado. Ela não gostava de o ver alterado. De repente ele altera-se. De punho fechado na parede, empurra a parede com o punho várias e várias vezes, até o movimento fazer-se ouvir e vibrar por dentro dela. “Não gosto que dances… amo-te tanto”. Tic tac. Ainda ele, “tenho medo de perder-te”.
Ela quis ir-se embora, mas não foi. O eco do punho na parede fez-se ouvir durante algum tempo na cabeça dela. Mas ele era um sedutor. Sedutor e inteligente.
A vida deles acabou por reunir condições iguais para vários comportamentos iguais, mas mudaram algumas coisas. Ela deixou de sair. Ela deixou de pedir o café no café. “Como está cara Isabel, sempre bonita e de brincos novos, são dois cafés!”, dizia ele. As caras “Isabéis” adoravam o senhor manipulador. Senhor manipulador o galanteador! Ele adorava ser o centro do mundo e era mesmo (ela deixou que ele fosse).
Os dois tornaram-se sangue do mesmo sangue. Cúmplices. Inseparáveis.
Falavam muito do que o agitava porque afinal, ele amava-a muito, por isso os problemas dele eram maiores! Tinha que a proteger do mundo e dos outros mundos todos também! E protegia. E gastava-se muito com isso.

O senhor manipulador teve ali um grande desafio à altura dos problemas que gosta de agarrar. Afinal ela era tudo o que ele tinha necessidade de beber. Ela era genuinidade, liberdade, leveza, sorriso e determinação. Mas deixou de o ser há tanto tempo que o narrador tem como memória mais antiga, o corpo pendurado por aquilo que ela costumava ser, naquele café entre amigas, onde todas dançaram menos o corpo dela.

O senhor manipulador teve um desafio, não tem mais.
Ela tornou-se a forma do molde que ele havia desenhado outras vezes. E ela caminha agora ao lado dele de mão dada, como uma criança.

Gabriela Relvas

A manipulação é uma forma de violência. Esta crónica foi escrita e baseada em histórias reais de mulheres que fui conhecendo ao longo do tempo.  Não façam como ela (na crónica). A pessoa que está ao vosso lado tem a missão de ser um mais na vossa vida e nunca a missão de ser a vossa vida.

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