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23h37 * 02.02.2017
Então é isto? Isto sem mais nada, simplesmente isto, só. Com que propósito nascemos? Só para ficarmos grandes? Porque ficamos cá pendurados até as raízes nos percorrerem a cara? É que ficamos até nos doer o corpo, sentados numa cadeirinha à espera do chá que traz o doce e de alguém que nos cole o telefone ao ouvido para ouvirmos quem está longe, sem já ouvirmos coisa nenhuma. Acabamos com uma participação passiva, com o amor de alguns, paciência de nenhuns. A cadeirinha. A cama. A caixinha.
Tenho pensado nestas coisas e gostava de acreditar verdadeiramente num propósito maior. Numa viagem inesquecível. Mas depois… depois assalta-me a realidade como só ela é, dura e inescrupulosa. E vem-me a questão à cabeça, a cada ato real cometido pela realidade: então é isto?

14h16 * 03.02.2017
Hoje o meu avô morreu. Ontem antes de me deitar escrevi sobre a morte, sem ter conhecimento ou anúncio que poderia estar perto. Escrevi sobre esta coisa do “então é isto”, sonhei com o tempo que voa, acordei estranha, vi-me numa fotografia onde me achei uma mulher feita, mais feita do que pensava e queria ser. E hoje o meu avô morreu.
O meu avô, o rezingão de lágrima no canto olho, a lágrima mais fácil de cair que conheci até hoje.
Lembro-me dos rebuçados que lhe enchiam os bolsos e lembro-me que os escondia perto de onde estava e laborava para me manter por ali, pertinho. Era assim que manifestava esta coisa do amor, sem nunca verbalizar, vivendo numa espécie de luta desenfreada com as emoções que insistiam em saltar-lhe dos olhos castanhos enormes. Por isto, rezingava como uma criança de poucos anos. Rezingava porque queria comer. Dava gosto vê-lo comer. Eu gostava dele. Ele gostava de mim. Ambos sabíamos (perdoa-me avô não ter passado mais tempo contigo, visitar-te mais vezes, não vou culpar a vida, vou culpar-me a mim).

18h54 * 03.02.2017
Se o objetivo é dançar a valsa enquanto cá estamos, porque raio assim que encontramos o que nos faltava assaltam-nos mais insatisfações, outras, novas ou até as mesmas, muitas vezes sobre a peça rotulada como a última peça do puzzle, a que vinha preencher tudo! O que estava certo virou errado. O que estava errado virou certo. Como é suposto fazer a melhor viagem se somos surpreendidos por elementos externos (internos) que nos corroem as escolhas, as decisões sobre os pares, as decisões sobre os trabalhos e sobre os sonhos até! Com quem devemos então dançar a valsa? Porque trabalho devemos nós dedicar o nosso tempo de vida?

23h13 * 03.02.2017
Não pode ser isto sem mais nada. Avô, há mais alguma coisa aí nesse lugar onde tu estás?

23h32 * 03.02.2017
No fim do jogo, todas as peças de xadrez vão parar à mesma caixinha. Ficam ali, sem mais nada. No frio do escuro. Ouvi isto há dias numa sala de cinema e absorveu-me o foco. E por falar em cinema, porquê que os filmes de hoje não vivem da simplicidade do que já foram. Aquela simplicidade que nos levava a sentir na pele o toque, no coração um tambor. Insatisfeitos estamos e queremos inventar mais. Estragamos. Escavamos.

00h38 * 04.02.2017
E se enquanto estivermos por aqui, no jogo, em cima do tabuleiro, fizermos uma viagem absolutamente maravilhosa e inebriante? Cagarmos na valsa e escolhermos o género que quisermos dançar? Apagarmos os moldes, as fórmulas, o puzzle. Escolhermos maior. Escolhermos tudo!
É possível avô… nesse lugar de onde tu estás agora, consegues ver-me? É possível chegar a esta dimensão em cima do tabuleiro?

Gabriela Relvas

Upgrade-AVP Annuza

3 Comments

  • Ana Maria Sá diz:

    São tão mais felizes pessoas como o teu avô! Vivem na simplicidade dos pensamentos e sentimentos, com os bolsos cheios de rebuçados! Sinto muito a tua perda! Adoro a tua forma de expressar o pensamento!

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