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Chegou-me a onda aos pés depois de um dia tórrido. E, entenda-se por tórrido, aqui, um dia que sem ser lembrado era esperado há muito. Não poderia chamar ao tórrido lufada de ar fresco, porque era parvo, mas era a baforada que as minhas pernas precisavam para usar um vestido. Aos folhos amarelos, o vestido entrou em cena como a lufada de ar fresco do dia tórrido. Assim já não é parvo. Acho (se bem que os folhos!). Mas a melhor parte foi tirá-lo assim que a água me congelou a ponta dos dedos. Como a baforada era superlativa e numa luta entre divindades ar e mar o mar levava uma cabazada, fui-me congelando pouco a pouco até cobrir a cabeça. De repente, a perceção que eu tinha de felicidade ganhou ali novos contornos. Passava por choque de temperaturas. Eu era um calippo a derreter por dentro. Sei que a cronologia natural não é esta, mas o meu lugar não era comum. Dentro de mim um deslizamento de terras que agora eram uma espécie de caldo. Tudo se misturou. O bom e o mau. Era inevitável pensar em coisa nenhuma. Na toalha, enquanto solidificava, caía-me a cabeça no buraco que abri na areia. As coisas que estavam dentro da cabeça também. Deixavam-se cair uma a uma. A vontade de não ter cabeça começara a seduzir-me. Mas precisaria dela para futuras operações e foi fácil libertar-me dessa ideia, juntamente com as outras. Estava incapaz de segurar o que quer que fosse. A cola do raciocínio deve ter saído com água.

Assim que o forno dos céus começara a arrefecer e a brisa levantava do mar, abri os olhos e vi um céu pulsante que me envolveu de forma impressionante. Parecia ter braços e boca. Andava a ler sobre mitologia grega e foi a única memória que arranquei do buraco que fiz com a cabeça na areia, a criação do universo, o Cosmos. Então Urano, o céu, cobria na perfeição Gaia, a terra, lugar onde eu estava ainda pregada. Era incrivelmente belo aquele acasalamento entre mãe e filho. Fiquei-me a observar. O céu cobria a terra por todo o lado. Num sobressalto, vem-me à memória que é deste incesto que passa a existir Tempo. Pego no telemóvel. Estava atrasada. Percebi o significado de filho da mãe. O chinelo de dedo deixa de dar para pôr o dedo, rasgou-se na bifurcação. Vou com os pés descalços até ao carro. Calco cócó. Na correria escorrego na rocha que revelava um declive que não tive tempo de observar por ir sem tempo. O sangue do joelho manchou-me os folhos do vestido amarelo enquanto procurava atender a chamada que insistia. Era a minha mãe. Pergunta-me se não quero ver o Conas hoje lá em casa. 

– Diz-se Conan – disse-lhe.

Gabriela Relvas

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