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A Helena andava agitada. Então, de manhã, a música que ouvia era mais frenética, chamava-lhe de “música espanta merdas“. Acordava numa espécie de ferver antecipado, antes do dia a provocar com qualquer coisa que fosse. Não acontecia, ela provocava. Fervia, enquanto o café fervia. Esperava pelo café a ferver, enquanto arrefecia (o café). Agarrava com as duas mãos a caneca de café e ficava ali, a sentir a vibração dos dedos na cerâmica. Contava os segundos, devagar, estendia o tempo do que lhe dava prazer. A serenidade do arrefecer dava-lhe prazer.

Da janela virada para a rua, as pessoas que passavam esbarravam nela, nessa audácia de partilhar um pequeno almoço com o mundo. A agitação e a serenidade de mãos dadas. A “música espanta merdas” perfeita. As pernas vivas e os pés nús, colados, a planta de um na do outro. A pequena cozinha, com a grande janela escancarada para deixar o mundo ver.

Sempre gostaste dessa cozinha Helena, era a janela lembras-te? A pequeníssima cozinha com a melhor janela do mundo. Voltaste a gostar dela.

– Foda-se, Helena, só agora ouves esta música?

Dizia a caneca.

E a Helena riu, assim, muito muito alto e de forma aparvalhada.

– Se calhar era a música Helena. Se calhar.

A Helena voltou a rir, com os olhos curvados tal qual o sorriso. A Helena sabia coisas que a caneca não sabia e tirou o maior prazer disso, por isso, por isso mesmo.

Ferve Helena, continua a ferver.

 

Gabriela Relvas

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