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Cada vez que te viro as costas. Cada vez que te viro as costas, repito, porque é assim que o sinto, feio e doído. Nunca te disse. Porque raio não dizemos o que vai na alma a quem mais nos merece despidos? Afinal, são só coisas boas. Tudo o que tenho por dizer, são só coisas boas.

Sabes aquele momento que me levas ao comboio? Do início ao fim? Sabes? Vês as horas, pões a camisola e as calças que mais gostas, engraxas os sapatos e, no fim de tudo, de todos os teus cálculos, para estares para mim perfeito, refilas que estás pronto?

Fazes cálculos porque estás sempre numa luta desenfreada contra o tempo. Trabalhaste sempre tanto. Demasiado. Tens no corpo o reflexo desse herói que deu tudo. Sim, não digas que não ao herói. Na verdade, acho que sabes que o és. Mesmo quando te odeias.

As tuas mãos enormes e ásperas, que eu amo tanto, têm a história desse bravo que és. Devia dar-te a mão e caminhar com ela na rua, pelo menos uma vez. Acho que não deixarias. Mas nunca foste (fomos) dessas coisas, não é assim? Ou então és e eu estou errada. Acreditas que não sei? Tenho 33 anos e não sei. Custa-me tanto mostrar a minha fragilidade ao teu lado. Acho que me ensinaste isso. Nunca te deixaste ser frágil e, no entanto, tens o coração mais sensível de todos os corações que conheço.

“Vamos?”

Então, depois da indumentária escolhida, simples, sempre simples, provavelmente umas calças gastas e uma t-shirt azul, mas a tua preferida, levas-me pela mão. Não ma dás, mas levas-me sempre pela mão. Sempre. Mesmo que não me fales. Mesmo que eu não te fale. E eu vou contigo. Deixo que resmungues das horas. Tens que acabar sempre os blocos de tempo das diferentes atuações das nossas vidas com a última palavra. Às vezes, atraso-me de propósito, para poderes resmungar. E, a seguir eu digo, “vamos?”

Vamos calados na viagem até estacionares o carro. O que há para dizer é sensível, por isso optamos por calar. Não sei se sabes que eu te percebo e descodifico. Não sei se sabes que eu te vejo assim, fascinante, complexo, simples, apaixonante. Um poeta lutador. E percebo todas as frustrações. Perceberás as minhas? Saberás o tamanho do medo que tenho de nunca vir a saber se me viste realmente? Perceberás o medo que tenho de não conseguir inundar-te de orgulho, não pelo que posso vir a ser numa folha de ordenado, mas, queria também eu ser fascinante.

Pai, poderemos ser fascinantes e livres como os pássaros?

Estacionas o carro e vais comigo, desces as escadas rolantes e esperas comigo. Sempre.

Então eu vou e abraço-te sem abraçar muito, olho-te, sem olhar por muito tempo e, abandono-te, depois de me entregares a mala na porta da carruagem 27, em Espinho.

Sempre quiseste que eu fosse livre e voasse.

Depois, alguém fixou profundamente esta estranha forma de vida. Há outro comboio para apanhar amanhã em Lisboa, o que fura a terra com gente a abraçar gente que não se conhece. Saio às 7h e chego a casa às horas que os pássaros dormem. Chego a casa e penso que um dia vou querer tanto que me leves ao comboio outra vez. Espinho, carruagem 27. Vou querer que me leves também quando for velhinha. Liberdade é ali, quando me atiras ao mundo para eu voar.

Quanto ao mundo, isso já são outros contos. Mas liberdade é ali, só ali. A mais pura e doída de sempre.

 

– Pai, já me esqueci do número do lugar.

– 115.

Gabriela Relvas

 

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