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De travo salgado na boca, a urgência do doce da bola de berlim enchia-me de saliva. Naquele ano ainda não havia trincado nenhuma na praia. Parei a pensar nessa absoluta absurda ausência na minha existência enquanto a miúda de passo largo e de anca agitada, dotada de uma projeção vocal que eu não estava habituada a ouvir, não em mulheres, se aproximava. Não sei porque nos acontecem estes buracos, esquecimentos daquilo que gostamos sem termos deixado de gostar. Os metros que nos separavam davam ainda espaço para mais pensamentos abelhudos, dada a velocidade a que decidiram aparecer.

É difícil conservar o que gostamos.

Eu gostava de desenhar. Não era preciso ser especialista para perceber que naquela folha branca estava o traço de quem tinha alguma habilidade. Eu já não sei desenhar. Felizmente ainda saberia comer uma bola de berlim. De mão enfiada no saco de praia encontrei o porta moedas. Comecei a contar. Apercebi-me que as tinha dedicado ao arrumador. Uma hora antes estendi-lhe a mão quando ele tinha as duas nos bolsos.

Escolhas.

Engoli o que me restava da saliva. Fiquei a pensar no que poderia fazer com 50 cêntimos. Rapidamente concluí que 50 cêntimos numa praia portuguesa serviam apenas para doar ao novo arrumador que me aplicava uma espera à saída. De mãos disponíveis a fazer o número do destorce, soltava um dengoso “obrigadinha menina” e eu voltava a estender a mão.

Erros repetem-se.

Isso foi depois. Ainda no antes. De repente a fome tomou conta de mim. Boiavam redondas nas ondas do mar, bolas! O doce e o salgado num contraste perfeito. Riam de mim com a boca cheia de creme. Douradas. Espampanantes. Disse para mim, tens de te convencer.

A impossibilidade agiganta a vontade.

Na esperança de passar a perna à vontade, pego no livro que andava a ler. Talvez os pensamentos de outro me sossegassem. Gosto do Pepetela, da forma como ele conta as coisas. “Abri a boca até a cabeça estar dividida em duas partes, como uma melancia cortada ao meio”. E sublinhei a frase. Eu sublinho as frases que gosto quando leio com medo de as perder para sempre. Mas esta deu-me sede. Muita sede. E veio-me outra vez à mente a inutilidade dos meus 50 cêntimos.

Fugir não resolve.

Visto-me. Calculo a distância entre o mar e a minha toalha. Se não me demorar as coisas não vão a mergulhos, penso. Caminho em direção à rampa entre as dunas que dá acesso à estrada e ao único café. Sem destino à procura de um. Subo a rampa. Avisto um guarda-sol amarelo a abrigar uma geladeira de duas rodas. Para meu espanto ofereciam gelados como estratégia de fidelizarem clientes ao novo produto. Faço número na fila de crianças. É a minha vez. Morango, disse. Não gosto de limão. Isso não disse. E saiu-me um sorriso luminoso de quem se sente surpreendentemente agradecida. Como poderia eu esperar uma operação de marketing numa praia quase deserta?

Os milagres acontecem, se por azar, os procurarmos.

De regresso à toalha, pensava no homem que parecia ter a pele feita de mar em dias de chuva. Picotada de marcas, mas também das rugas de quem oferece um sorriso sem pedir nada em troca. O guarda-sol amarelo e a geladeira plástica de cores não lhe pertenciam, pensava. Ficaria bem num barco, com as redes cheias de peixe. Se as pernas deixassem, disse-me.

Nada permanece.

A toalha já lá não estava, nem o saco de praia, nem os chinelos. Alguém que estava atento ao mar e, por sorte, atento à minha tralha, apanhou-os. Talvez tivesse sido a senhora de quem a filha me tornei amiga mal estacionei o meu lugar na areia. A pequena veio em direção a mim assim que as viu, as bolachas. Denunciou-me a que eu trazia na mão e ia pôr à boca mesmo antes de estender a toalha. Ofereci-lhe essa, que engoliu rapidamente, depois entreguei-lhe o resto do pacote pouco afortunado com mais duas. Os olhos redondos da Susana pareciam armas de guerra encaixados numa postura vertical incisiva que não ultrapassava os 90 cm de altura. Tinha que as entregar, caso contrário, começava a disparar lágrimas.

Nunca subestimes o inimigo pelo seu tamanho.

Enquanto devorava o meu gelado de morango feito de gelo, antes que o inimigo vislumbrasse o meu pequeno tesouro, dou pela ausência deste. Penso na possibilidade de um regresso a casa a pé e descalça. Elimino a possibilidade de atribuir o roubo ao inimigo, estava fora de questão. Não penso nos 50 cêntimos. De certo que quem os levou não ia enriquecer. Ainda bem que não trouxe telemóvel, ruminava. Ainda mal. Talvez o tivesse levado comigo até à surpreendente fila dos gelados oferecidos na terra do nunca acontece. Mas depressa desisti das conjeturas do que poderia ter sido. Nunca foram o meu forte e sempre considerei os seus praticantes seres de enorme imbecilidade. Não que eu não fosse imbecil. Reparem. Na verdade, tinha o meu culpado escolhido. A pequena assaltante de bolachas. O inimigo que não teria levado a minha toalha do panda, mas que me provocou uma vontade doida por açúcar.

Todos temos telhados de vidro.

Naquele momento nem tejadilho. A minha vida toda escancarada. Reparo num saco de praia igual ao meu. Vinha em minha direção. Não, não era igual, era o meu. Sinto um queixo a 20 cm do meu cabelo numa linha horizontal. Vi-lhe primeiro o sorriso. Vi a toalha cuidadosamente dobrada, os dedos no nó da bifurcação dos meus chinelos. O embaraço, também o vi, um embaraço que estava disposto a ficar. Depois vieram os olhos. Os dele e os meus. E sentei-me na areia que se despedia da gente. Esperei que se sentasse comigo e ficássemos ali, a invadir-lhe o namoro com o mar. O céu tinha todas as cores que devem ser partilhadas. Rosa, vermelho, laranja e uma poção de lilás. O mar, macio como só ele sabe ser. Eu, junta com a minha imaginação. Já viste como seria se tivesses aparecido? Ia dizer-te que apareceste como açúcar num dia salgado, debaixo de um céu de poções mágicas. No dia que homem do mar me ofereceu o sorriso que permanece e a Susana me lembrou o quanto eu gosto de desenhar.

O amor não guarda toalhas de praia.

Deixei-me estar, com a certeza que tinha o arrumador à espera dos meus 50 cêntimos, assim que a vizinha do direito me entregou amavelmente as coisas.

Obrigada.

Gabriela Relvas

One Comment

  • Rui Ferreira diz:

    É numa exceção que os ” e se’s” se tornam importantes! E se tivesses comido uma bola? A vida seria melhor para quem já trata o pão-de-ló por tu!? Talvez não… Mas ir à praia e não molhar os pés é quase igual a não comer uma bola! Por momentos o dia tonar-se-ia completo. É uma opinião de um imbecil que sempre pensa na bola antes de chegar! 😋

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