IC Espinho-Oriente: Histórias que se escrevem II
Desta vez (não sabia ainda eu que podiam acontecer casos de histórias especiais em tão curtos espaços de tempo), o V., a minha nova “personagem”, também à janela. Tenho sempre uma espécie de inveja por quem exibe um lugar à janela, mas logo me passa. Parece que nos distancia do mundo dos outros o olhar da janela o mundo que corre de face encostada ao vidro. Vira compartimento privado, mesmo que partilhe o braço da cadeira e tenha encontros com o meu cotovelo esquerdo, com um cotovelo direito desconhecido e intrusivo.
Estes dias percebi que quando não estamos no nosso compartimento privado há uma vida a acontecer, quase sempre mais interessante que olhar o já por nós vivido.
O V. é de Detroit. O V. apresentou-se mal me sentei, disse sentir que se devia apresentar tendo em conta que seríamos vizinhos umas boas horas. Eu ri, lembrei-me da outra viagem, que por sinal fora bem interessante. O V. acrescentou, “gosto das tuas unhas”, dizendo fazerem pandã com as com as minhas calças. As minhas unhas não têm por hábito ouvir piropos, especialmente pintadas em tons de pele. O V. sabia “sacar” um sorriso, mesmo sem eu querer, ele ganhava-o.
Tínhamos os dois computadores erguidos para trabalhar. Foi aí que vi a imensidão de seguidores que o V. tinha no facebook. Curiosa, perguntei-lhe, o porquê.
Para o V. era difícil explicar. Decidiu-se a mostrar-me um artigo que escreveram sobre ele. E eu li.
O V. nasceu e cresceu num bairro pouco famoso de Detroit, conhecido por Baby Bronx. De tudo o que li, lembro-me bem de algumas coisas. Sofreu abusos quando criança, em adolesceste traficante, depois carjacker. Um ladrão, um criminoso. O carjacking levou-o a 10 anos de prisão, o carjacking e o mau comportamento (desta vez lá dentro).
Parece difícil fazer a digestão de toda esta informação que irrompe nos olhos, nos ouvidos, no coração. Mas não foi. Estranhamente, não foi. O V. exibia um sorriso de menino, escancarado, os olhos pareciam vibrar de cada vez que falava, olhos de quem começara a viver faz pouco tempo. O V. tinha culpas, enormes e imensas culpas, mas não tocamos no assunto. Ambos sabíamos que não tocar no assunto era o representar da consciência. Um consciência pesada, muito pesada.
Tem 35 anos, apenas mais 2 que eu. Há dois anos que está cá fora.
Hoje o V. é um porta voz, um orador, um pregador, o que preferirem chamar. Alguém que vai até uma sala para contar o que lhe aconteceu, para evitar que outras crianças tenham este caminho de risco. Uma proposta que fez a si próprio e anda a cumprir. Apanhei-o na curva dos seus discursos pelas escolas da Europa. Depois dos Estados Unidos e da Ásia.
O V. tem claramente o dom da palavra e aproveitou o dom. Está a estudar, se não estou em erro, Sociologia e Ciências Políticas. Fundou uma organização sem fins lucrativos em Detroit, uma espécie de incubadora do espírito empreendedor jovem. Algo que lhe faltou.
O V. perguntou a minha idade quando me levantei para sair em Oriente. Disse-lhe 33 acabados de fazer. Senti-lhe alguma preocupação na pergunta, especialmente atirada assim na minha saída. Insistiu, “incomodam-te os anos a correr?”, na altura não percebi de imediato o desconforto. Mas claro… parva que sou, o V. começara a viver. Disse-lhe que só agora começou e por isso o melhor está por vir. Disse-lhe porque o sinto verdadeiramente. Dei-lhe a minha melhor resposta, sem fazer a equação.
Gabriela Relvas